

A publicação do Decreto nº 12.686, no dia 29 de outubro de 2025, provocou uma reação em cadeia em todo o país, especialmente entre instituições que há décadas dedicam sua existência à educação de pessoas com deficiência. Em Três Pontas, a preocupação foi imediata. A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) local, que há mais de 53 anos atua no município, expressou em entrevista à Equipe Positiva, o impacto que a medida pode causar tanto nas famílias, quanto na estrutura de atendimento que hoje garante a educação especializada a centenas de alunos.
O decreto, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo ministro da Educação, Camilo Santana, institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva (PNEEI), entre seus objetivos, está na ampliação da inclusão de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades nas escolas regulares da rede pública. O texto retira da redação anterior da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) o termo “preferencialmente”, presente na parte que indicava a matrícula de alunos com deficiência em escolas comuns. Essa alteração, segundo especialistas e entidades do setor, pode eliminar na prática a possibilidade de escolha dos pais entre uma escola comum e uma escola especializada.

Para a Superintendente da APAE de Três Pontas, Maria Rozilda Gama Reis (foto), a medida representa um grave retrocesso. Ela explica que, ao longo de décadas, o movimento das APAEs se consolidou como uma rede de educação, saúde e assistência social, amparada por profissionais qualificados e metodologias específicas de ensino. Somente em Três Pontas, 174 alunos com deficiência são atendidos atualmente pela instituição na área da Escola.
Rozilda destaca que as salas de aula da APAE possuem entre oito e doze alunos, o que permite um acompanhamento personalizado e eficiente. “O nosso público precisa de adaptações curriculares constantes. Seguimos um cronograma de ensino, mas ele é ajustado conforme as habilidades e necessidades de cada aluno. Não existe homogeneidade aqui. A gente trabalha de forma heterogênea, respeitando o ritmo de cada um”, pontua.
Segundo ela, o corpo técnico da Instituição é formado por profissionais especializados em deficiência intelectual, múltipla e autismo, além de uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, médicos, psicopedagogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas. “Não é apenas sobre ensinar o conteúdo. É sobre transformar o conteúdo em prática de vida. A gente prepara o aluno para viver, para se comunicar, para desenvolver autonomia dentro das suas possibilidades”, explica.
Rozilda também reforça que a APAE de Três Pontas mantém um trabalho considerado modelo em Minas Gerais, através do Programa Educação Colaborativa, realizada em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. O programa permite que alunos com defasagem escolar ou condições leves de deficiência frequentem a rede comum com apoio técnico da APAE, enquanto aqueles que precisam de atendimento mais intenso permanecem na instituição especializada. “Nós somos totalmente a favor da inclusão, mas ela precisa ser verdadeira. Inclusão não pode significar exclusão. Existem alunos que necessitam de um ambiente adaptado, de tecnologia assistiva, de recursos de informática e de acompanhamento próximo. A escola comum, por mais boa vontade que tenha, ainda não está estruturada para isso”, ressalta.
Ao comentar o novo decreto, Rozilda foi categórica: “Nós ficamos assustados porque o movimento das APAEs está aí há mais de setenta anos no Brasil, é um movimento respeitado, sólido, com pesquisas, resultados e histórias de vida transformadas. Esse decreto desconsidera toda essa construção.”

Para ela, o maior problema está na retirada da palavra “preferencialmente” do texto da LBI, que garantia o direito de escolha das famílias. “Na forma atual, os pais perdem o direito de decidir. E ninguém conhece melhor o filho(a) do que a própria família. Muitas vezes, o que a gente faz aqui só funciona porque existe parceria entre a escola e a família. O aprendizado acontece dentro e fora da APAE. Quando a legislação impõe que todos estejam na escola comum, sem estrutura, o risco é de exclusão”, afirma.
Rozilda explica ainda que o decreto prevê que os profissionais de apoio escolar tenham formação mínima de 80 horas, o que, segundo ela, é insuficiente para atender a complexidade do público. “Nós fazemos educação continuada. Nossos profissionais passam por capacitações constantes, por estudos e pesquisas. O que fazemos aqui é resultado de anos de aprimoramento. O decreto reduz o que é complexo, a uma simples exigência burocrática”, avalia.
O impacto, caso o texto entre em vigor plenamente em 2026, seria severo. As APAEs, Pestalozzis e demais escolas especializadas deixariam de oferecer ensino formal, permanecendo apenas com serviços de saúde e assistência social. “Não é que as APAEs vão fechar, mas as escolas especializadas deixariam de existir. E isso é muito grave. A gente está falando de pessoas que precisam desse espaço, de famílias que finalmente têm um lugar seguro e preparado para seus filhos. É um retrocesso enorme”, desabafa.
A Superintendente reconhece que a proposta de inclusão total é bonita no papel, mas lembra que, sem estrutura e preparo, pode gerar exclusão. “Eles falam em colocar todos num ambiente só, mas isso é uma falta de respeito com as diversidades. Cada pessoa com deficiência é única. O que precisamos é de respeito às diferenças e condições reais de aprendizagem”, diz.
Rozilda ainda lembrou que países desenvolvidos, como França, Alemanha e Japão, mantêm escolas especializadas como parte complementar da rede inclusiva. “As escolas especiais existem nos países de primeiro mundo, porque reconhecem que o atendimento especializado é essencial. São pessoas que precisam de profissionais com altas habilidades para desenvolver suas próprias habilidades. Isso é inclusão real”, afirma.
Apesar do cenário de incerteza, a APAE de Três Pontas segue confiante e mobilizada. Segundo Rozilda, o movimento das APAEs em todo o Brasil já se articula politicamente, buscando diálogo com o Congresso Nacional e o Senado para rever ou ajustar o decreto. “O nosso trabalho tem raiz. Onde tem raiz, não se corta fácil. Acreditamos que tudo isso vai se resolver, mas não podemos ficar de braços cruzados. Direitos não podem ser encurtados. Foram conquistas de famílias que lutaram muito, que hoje já nem estão aqui, mas que abriram caminhos para que seus filhos tivessem direito à educação e convivência”, disse.
A Superintendente finaliza com uma mensagem de esperança às famílias trespontanas: “A APAE é uma instituição de portas abertas, feita de afeto, compromisso e técnica. Continuaremos firmes na nossa missão, acreditando que a inclusão deve ser feita com respeito, sensibilidade e liberdade de escolha. A gente transforma vidas todos os dias e isso não pode ser apagado por um decreto.”
Entenda o Decreto nº 12.686/2025

O novo decreto institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva e cria a Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva, com a meta de promover o acesso de todos os alunos com deficiência à escola comum. O texto prevê que a educação especial deve ser ofertada de forma transversal em todos os níveis de ensino, com apoio e adaptações necessárias.
Entre os princípios da nova política estão a valorização da diversidade, o combate ao capacitismo, o direito universal à educação e a garantia de acessibilidade. Também define que o Atendimento Educacional Especializado (AEE) será prestado preferencialmente nas escolas comuns, com o apoio de profissionais formados para atuar com alunos com deficiência, com carga horária mínima de 80 horas.
Apesar de não mencionar explicitamente o fechamento das escolas especiais, o decreto enfraquece juridicamente o papel das APAEs e instituições similares, ao retirar a menção que dava às famílias o direito de optar por uma escola especializada. Essa mudança vem sendo contestada por entidades de todo o país, que enxergam nela uma ameaça à autonomia familiar e à diversidade de modelos pedagógicos que compõem a educação inclusiva.
Em Três Pontas, a APAE segue como referência no atendimento especializado e na defesa do direito de escolha das famílias das pessoas com deficiência. A Instituição, que há décadas constrói sua história com base no respeito à singularidade, reafirma que inclusão verdadeira é aquela que considera as diferenças — e não as apaga em nome da aparente igualdade.
















